quarta-feira, setembro 03, 2003

Primeira Carta ao Povo

Hoje, pela manhã, enquanto em frente ao espelho lutava com o nó de gravata que todos os dias se repete – todos os dias se repete -, lembrei-me do meu diário. Há alguns meses que antes de me deitar nele deito pensamentos que não pensava em pensar. E hoje já não passo sem esse momento.
Na minha luta matinal vi uma nódoa na dita gravata, e em vez de, maquinalmente, atrasado, escolher outra a condizer, gelei. Gelei porque sentia a garganta apertada e ainda nem tinha ajustado o nó. Era o mesmo aperto que sinto quando me sento no topo da mesa do Conselho e oiço o rol dos incêndios, do défice, dos Melos (bem, não oiço o nome, propriamente dito), dos blindados que é preciso comprar, da renovação dos Audis, da brincadeira de que tenho de apertar a mão ao Bush e fazer as minhas férias nos Açores. Era o mesmo aperto. Foi aí que gelei.
Porque não vos ei-de dizer ? Para mais se não é no Conselho que vou dizer o que quer que seja sobre o meu diário ? Em casa pensam que tenho vindo a desenvolver uma certa queda para as literárias. Que estou melhor, mais refinado, que treino. Sim, eles sabem do diário. Só não sabem da gravata. Ainda não lhes disse e ... a verdade é que só faz sentido dizer-lhes depois de vos contar. É que, em boa verdade, eles já sabem.
É verdade: minto-vos. A todos. Todos os dias vos relato dez por cento de uma realidade como se dissesse tudo sobre a coisa. E tenho perfeita noção de que por isso, em rigor, vos minto, vos conto apenas o horror que interessa, o medo que interessa, a medalha que interessa. Mas e então ? Querem diferente ? Não o suportariam. Querem ouvir o défice todo ? Não há orçamento para isso – a psiquiatria de que precisariam não dá de comer a dez milhões de portugueses. Nem conseguiam trabalhar. Acreditem. É para vosso bem. E porque tenho eu que ser o pio quando até o tipo que vos vende as bolas de berlim no Algarve vos engana ? E com esse não protestam – comem o cremesinho e apostam na esperança de não se borrarem todos. Bem vistas as coisas, faço melhor papel que o papa.
É um facto: não estão preparados para ouvir tudo. Sei disso, essencialmente, porque oiço a TSF de manhã. Pensava que era da gravata mas um dia estava a ouvir o fórum e reparei que ainda não a tinha posto (nesse dia saí mais tarde de casa – o único, aliás, de que me lembro desde há meses porque acto contínuo ouvi risos de criança no quarto ao lado). Não se queixem. Vocês escolheram-me para fazer o papel do outro, e podem estar seguros de que também vou cair da cadeira.
É até cómico: sabem quanto me pagam vocês todos (salvo algumas empresas) para ser cordeiro de sacrifício ? E SABEM QUANTO É QUE EU PAGO AOS TIPOS QUE ME VÃO SACRIFICAR ?
Não se preocupem comigo. A sério. Preocupem-se mas é com vocês e com a família e continuem a participar no fórum. Não me forcem às verdades todas. Não me paguem mais que não é por aí que me convencerão a dizer-vos aquilo que, em rigor, sei que não querem ouvir. Ou pensam que aguentariam a verdade das casas pias sem serem mastigadas pela televisão ? As lutas de audiências fazem milagres pela realidade, realizam-na a e produzem-na melhor que os americanos.
E se alguma vez tal poesia vos passar pela cabeça, é porque chegou a altura de votarem noutro. Nessa altura, vou para a vossa beira. E que o Eterno me dê o castigo de receber mais ao fim do mês, por ordem daquele que, então, serei eu a sacrificar. Como dizia um tipo que começo a entender, que é querem ?... é a vida.