"A humidade quente da loucura"
O blusão de cabedal negro empoleirava-se nas costas da cadeira, aparentando sussurrar experiências e experiência de noites e noites brancas, esgotadas de cigarros hidratados por pequenos goles de água da montanha embalada na Via Longa. Mesmo sem o dono lá dentro mantinha a gola semi-levantada, com personalidade.
A história ia sendo contada em voz baixa, entre um mastigar e um gole, os olhos atentos ao redor. O sobrolho franzido não deixava abrandar o tom grave, e ela, ouvindo-o, percebia a cada palavra que só podia ser como ele dizia, como ele finalmente descobrira, a meio do trigésimo sétimo cigarro quando eram já três da manhã e estava só.
Mas havia pormenores que só esquematicamente podiam ser explicados. O blusão passou-lhe uma caneta para a mão. Falando ainda mais baixo, ilustrava traços e letras que ia depositando na toalha de papel, subtil mas habilmente escondidos pela garrafa de vinho, que convenientemente estava ainda pela metade, impedindo o translúcido: um conselho do blusão, que há anos o não deixava escorregar em qualquer descautela. Já lá iam mesmo muitos anos daquela vida.
Mas uma ou outra palavra escapava no eco dos talheres. O Cruz ... manchas, sim ...não eram dele ... isso prova-se ...o Pedroso, nem imaginas ... é aquele puto ... estão feitos ... eu pensava ... e fez-se-me um clik ... Os olhos passearam mais uma vez em torno dos pratos. O silêncio momentâneo: vinha o empregado com os cafés. Foi-se. ... agora vê lá ...
O vestido vermelho que ela escolhera para a ocasião não dava bem com as meias de renda, tantas vezes usadas sem lucro. O cabelo pintado, louro, fora cuidadosamente disposto, quase a bater os ombros. Só ouvia. Estava tão embevecida pela história, admirável, concluída, como pelo cheiro a frango assado que escorria das paredes, pisado e repisado. E não podia deixar de reconhecer que era brilhante a conclusão dele, depois de tantos meses de raciocínios truncados pela barafunda de factos novos, jornais, intrigas e horas mal dormidas.
Veio a conta. Deixaram o dinheiro no pires, e levantaram-se. Ele vestiu o blusão; ela olhou por cima do ombro e colocou a mala ao ombro. Olharam-se com um ar cumprido, de fim. Ele deixou-a passar, cavalheiro. Estavam cansados e precisavam de dormir. A excitação tinha-lhes aberto o apetite: o blusão cobiçava as meias de renda e a caneta pensava no vestido vermelho ... Mas não podia ser. Havia mesmo que dormir um pouco, porque no dia seguinte a papelaria abria às 9 em ponto e à dois dias que chegava em cima das dez; e os novos rolamentos que tinham vindo de Águeda para ser montados nas novas carruagens não podiam sê-lo sem que as juntas fossem limpas antes. Acabara a fantasia por esta noite mas amanhã ... poderiam ser outra vez quem quisessem ser.
A história ia sendo contada em voz baixa, entre um mastigar e um gole, os olhos atentos ao redor. O sobrolho franzido não deixava abrandar o tom grave, e ela, ouvindo-o, percebia a cada palavra que só podia ser como ele dizia, como ele finalmente descobrira, a meio do trigésimo sétimo cigarro quando eram já três da manhã e estava só.
Mas havia pormenores que só esquematicamente podiam ser explicados. O blusão passou-lhe uma caneta para a mão. Falando ainda mais baixo, ilustrava traços e letras que ia depositando na toalha de papel, subtil mas habilmente escondidos pela garrafa de vinho, que convenientemente estava ainda pela metade, impedindo o translúcido: um conselho do blusão, que há anos o não deixava escorregar em qualquer descautela. Já lá iam mesmo muitos anos daquela vida.
Mas uma ou outra palavra escapava no eco dos talheres. O Cruz ... manchas, sim ...não eram dele ... isso prova-se ...o Pedroso, nem imaginas ... é aquele puto ... estão feitos ... eu pensava ... e fez-se-me um clik ... Os olhos passearam mais uma vez em torno dos pratos. O silêncio momentâneo: vinha o empregado com os cafés. Foi-se. ... agora vê lá ...
O vestido vermelho que ela escolhera para a ocasião não dava bem com as meias de renda, tantas vezes usadas sem lucro. O cabelo pintado, louro, fora cuidadosamente disposto, quase a bater os ombros. Só ouvia. Estava tão embevecida pela história, admirável, concluída, como pelo cheiro a frango assado que escorria das paredes, pisado e repisado. E não podia deixar de reconhecer que era brilhante a conclusão dele, depois de tantos meses de raciocínios truncados pela barafunda de factos novos, jornais, intrigas e horas mal dormidas.
Veio a conta. Deixaram o dinheiro no pires, e levantaram-se. Ele vestiu o blusão; ela olhou por cima do ombro e colocou a mala ao ombro. Olharam-se com um ar cumprido, de fim. Ele deixou-a passar, cavalheiro. Estavam cansados e precisavam de dormir. A excitação tinha-lhes aberto o apetite: o blusão cobiçava as meias de renda e a caneta pensava no vestido vermelho ... Mas não podia ser. Havia mesmo que dormir um pouco, porque no dia seguinte a papelaria abria às 9 em ponto e à dois dias que chegava em cima das dez; e os novos rolamentos que tinham vindo de Águeda para ser montados nas novas carruagens não podiam sê-lo sem que as juntas fossem limpas antes. Acabara a fantasia por esta noite mas amanhã ... poderiam ser outra vez quem quisessem ser.
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