O Estado contra Todos (II)
Amigo Tiago,
O problema não está na "CRP", nem é constitucional, mas antes constituinte (e o respectivo processo não é jurídico - no sentido científico do termo - mas sim político-cultural).
Aqui deixo um excerto de reflexão, escrito em 1937 - e tão actual quanto de vanguarda.
"Se observarmos a vida pública dos países onde o triunfo das massas mais avançou - são os países mediterrânicos - surpreende ver que neles se vive politicamente no dia-a-dia. O fenómeno é sobremaneira estranho. O poder público encontra-se nas mãos de um representante de massas. Estas são tão poderosas que aniquilaram qualquer possível oposição. São donas do poder público de forma tão incontrastável e superlativa que seria difícil encontrar na história situações de governo tão prepotentes como estas. E, no entanto, o poder público, o governo, vive o dia-a-dia; não se apresenta como um porvir franco, não significa um anúncio claro de futuro, não aparece como o começo de algo cujo desenvolvimento ou evolução resulte imaginável. Em suma, vive sem programa de vida, sem projecto. Não sabe aonde vai porque, rigorosamente, não vai, não tem caminho, prefixado, trajectória antecipada. Quando esse poder público tenta justificar-se, não alude para nada ao futuro, antes pelo contrário, encerra-se no presente e diz com perfeita sinceridade: «Sou um modo anormal de governo que é imposto pelas circunstâncias.» Quer dizer, pela urgência do presente, não por cálculos do futuro. Daí que a sua actuação se reduza a esquivar o conflito de cada hora; não a resolvê-lo, mas a escapar dele para já, empregando seja que meios forem, mesmo à custa de acumular com o seu uso mais conflitos para a hora seguinte. O poder público sempre foi assim quando exercido directamente pelas massas: omnipotente e efémero. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projecto e anda à deriva. Por isso não constrói nada, mesmo que as suas possiibilidades, os seus poderes, sejam enormes.
E é este tipo de homem que no nosso tempo decide. Convém, pois, que analisemos o seu carácter."
(Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)
O problema não está na "CRP", nem é constitucional, mas antes constituinte (e o respectivo processo não é jurídico - no sentido científico do termo - mas sim político-cultural).
Aqui deixo um excerto de reflexão, escrito em 1937 - e tão actual quanto de vanguarda.
"Se observarmos a vida pública dos países onde o triunfo das massas mais avançou - são os países mediterrânicos - surpreende ver que neles se vive politicamente no dia-a-dia. O fenómeno é sobremaneira estranho. O poder público encontra-se nas mãos de um representante de massas. Estas são tão poderosas que aniquilaram qualquer possível oposição. São donas do poder público de forma tão incontrastável e superlativa que seria difícil encontrar na história situações de governo tão prepotentes como estas. E, no entanto, o poder público, o governo, vive o dia-a-dia; não se apresenta como um porvir franco, não significa um anúncio claro de futuro, não aparece como o começo de algo cujo desenvolvimento ou evolução resulte imaginável. Em suma, vive sem programa de vida, sem projecto. Não sabe aonde vai porque, rigorosamente, não vai, não tem caminho, prefixado, trajectória antecipada. Quando esse poder público tenta justificar-se, não alude para nada ao futuro, antes pelo contrário, encerra-se no presente e diz com perfeita sinceridade: «Sou um modo anormal de governo que é imposto pelas circunstâncias.» Quer dizer, pela urgência do presente, não por cálculos do futuro. Daí que a sua actuação se reduza a esquivar o conflito de cada hora; não a resolvê-lo, mas a escapar dele para já, empregando seja que meios forem, mesmo à custa de acumular com o seu uso mais conflitos para a hora seguinte. O poder público sempre foi assim quando exercido directamente pelas massas: omnipotente e efémero. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projecto e anda à deriva. Por isso não constrói nada, mesmo que as suas possiibilidades, os seus poderes, sejam enormes.
E é este tipo de homem que no nosso tempo decide. Convém, pois, que analisemos o seu carácter."
(Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)
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